

O poema épico “Os Lusíadas”, do grande poeta Luís de Camões, é uma obra marcadamente renascentista, não só porque foi escrito em plena época do Renascimento em Portugal, mas porque reflecte os ideais característicos deste movimento ideológico, científico, literário, artístico e político.
O recurso à mitologia clássica não poderia deixar de estar presente numa obra que se inspira no modelo clássico da Eneida, mas, porque as intenções e as épocas em que se inserem são bem diferenciadas e distantes no tempo, o seu papel teria de ser forçosamente muito diferente. Em “Os Lusíadas” não são os deuses que determinam a história dos heróis. Eles são, por vezes, figuras alegóricas ou com funções meramente decorativas; outras, surgem como reflexo do entusiasmo renascentista pelos instintos e forças naturais (ou sobrenaturais) ignorados, que impulsionam o destino dos homens; mas, acima de tudo, o seu papel é mostrar a vitória do homem moderno, que começou a aprender a dominar o planeta, sobre os deuses.
Estes, no poema de Camões, sentem-se ameaçados pelas navegações dos portugueses e, como Baco, no Canto VI refere, receiam que, de progresso em progresso, os homens ”venham a deuses ser” e eles humanos. Adamastor, mais do que qualquer outra figura, ilustra o orgulho humano renascentista de quebrar os limites que até aí eram impostos e de ultrapassar os “vedados términos” de origem natural – o cabo tormentoso, e os psicológicos – o medo do desconhecido.
Mas o herói desta epopeia é um herói colectivo e não um homem apenas. São “as armas e os barões assinalados” que partiram à descoberta do mar desconhecido, são “as memórias gloriosas” dos reis que “foram dilatando a Fé e o Império” e todos aqueles que praticaram feitos valorosos e assim se tornaram famosos (se libertaram “da lei da morte”). Assim, é todo o povo português e os seus antepassados da Antiguidade, os Lusos, ou Lusitanos (“redescobertos” por humanistas como André de Resende) quem se torna o símbolo da glória do domínio do homem sobre a natureza. Orgulho humano e orgulho nacional surgem aqui juntos: os homens portugueses, que já anteriormente venceram quem se lhe opôs, vencem agora os medos de antigamente e dominam o mar!
Segundo António José Saraiva, a mitologia clássica tem ainda um outro interesse em “Os Lusíadas”: ela “constitui o seu próprio travejamento romanesco, e, em parte, a sua própria alma”. É que a valorização excessiva dos feitos de guerra, a “concepção da história nacional como uma sequência de proezas de heróis militares... constitui hoje o peso morto d’Os Lusíadas”. As personagens mitológicas (com excepções como as do episódio de Inês de Castro) têm justamente o que falta às personagens históricas: actuam muito como homens de carne e osso, têm paixões e defeitos, fazem conspirações e guerras, são furiosos, vingativos, invejosos, mas também amorosos e meigos. A intriga que se desenrola entre eles é verdadeiramente humana.
“O mar fica povoado de...deuses e deusas, que acalmam as ondas. E é assim nas mãos dos deuses, carinhosas ou raivosas, que os portugueses vão navegando... sem mesmo se darem conta dos perigos: os homens são abstractos como deuses, e os deuses são carnais como homens; e é evidente que sem a intriga divina não haveria no poema um enredo a ligar as suas diversas partes. Não se chegaria a perceber por que artes conseguiram eles chegar a Calecute ou que dificuldades tornaram notável a sua viagem”.
Esta
sua actuação vem desfocar a atenção dos leitores dos factos históricos para
as suas histórias.
O episódio com o Adamastor (situado no Canto V, mesmo no centro d’Os Lusíadas) é um bom exemplo de tudo isto. Apesar de ser um ser não-humano, apaixona-se, guerreia com os deuses, é vítima de um ardil, tenta impedir a passagem de Vasco da Gama, mas é vencido pelos portugueses (embora a longo prazo se venham a cumprir algumas das suas ameaças). A maior diferença entre os humanos e o gigante, é mesmo a aparência externa. Camões descreve-o como uma figura “robusta e válida / De disforme e grandíssima estatura”, e com o “rosto carregado, a barba esquálida / Os olhos encovados, e a postura / Medonha e má”, de “cor terrena e pálida”. Seus cabelos estavam “cheios de terra e crespos” e tinha “a boca negra” e “os dentes amarelos”. Fala com um tom de voz “horrendo e grosso” que parecia “sair do mar profundo”, e até causava arrepios.
Como se trata da personificação do cabo da Boa Esperança, pode dizer-se que se trata da vingança da Natureza sobre os portugueses, sob a forma dos medos que os marinheiros portugueses tinham de monstros horrorosos que faziam naufragar as naus e tirar as vidas a muitas pessoas. Eram os monstros que simbolizavam o desconhecido, mas também o fantástico. Eram ainda os guardiões dos tesouros, pois para lá deles situava-se a Índia, fonte de riquezas e sonhos. Era portanto necessário haver um guarda realmente muito poderoso para que só conseguissem passar os mais merecedores, os mais valentes e ousados
Por isso ele começa por dirigir-se aos portugueses de uma forma muito agressiva e imperiosa, com a intenção de os amedrontar. Esta primeira parte do encontro é uma espécie de julgamento sumário: o gigante começa por acusá-los dos crimes de irem aonde era proibido, de invadirem o seu território, de tentarem desvendar os segredos que ele guarda, o que a nenhum humano era permitido fazer, por mais heróico ou poderoso que fosse (“os vedados términos quebrantas / E navegar meus longos mares ousas”; “Pois vens ver os segredos escondidos”; “A nenhum grande humano concedidos / De nobre ou imortal merecimento”).
Não há lugar para defesa, Adamastor passa logo a ditar a sentença: serão castigados pelo seu atrevimento, pois todas as naus que ali passarem sofrerão enormes tempestades. Haverá ainda uma vingança mais terrível para a primeira que ali passar depois deles - “quantas naus esta viagem”; “fizerem, de atrevidas / Inimiga terão esta paragem / Com ventos e tormentas desmedidas! / E da primeira armada”; “Eu farei de improviso tal castigo, / Que seja mor o dano que o perigo”. Mas ainda não acabaram as sentenças. O homem que o descobriu e passou será severamente castigado, bem como o primeiro vice-rei da Índia, todos junto dele (“Aqui espero tomar, se não me engano, / De quem me descobriu suma vingança”; “E do primeiro Ilustre”; “Serei eterna e nova sepultura”).
Mas depois desta demonstração de cólera e ódio, Vasco da Gama recuperando do primeiro susto e admirado por esta estranha figura, pergunta-lhe quem é.
Com mais outro berro ele diz-lhes que é o Cabo Tormentório que nunca ninguém houvera passado até chegarem os portugueses com a sua ousadia. E conta-lhes a sua triste história com Thétis e a sua pena por ter desafiado Zeus. Perturbado por ter “revivido” verbal e mentalmente a sua história, nem se dá conta que quando acaba, já os portugueses vão longe. Mas isso não o impede de concretizar as vinganças que os portugueses bem rezaram para que não acontecessem. Bartolomeu Dias e D. Francisco de Almeida (o vice-rei da Índia) perecem a seus “pés”, bem como Manuel de Sousa Sepúlveda, cujo naufrágio viria a ser dos mais conhecidos.
Mas o que importa aqui é que naquele momento, não conseguiu demover os portugueses do seu objectivo: a descoberta do caminho marítimo para a Índia, sendo em “Os Lusíadas” o maior obstáculo transposto pela coragem e determinação dos bravos marinheiros lusitanos.
Esta criação de Camões a partir da mitologia, e o episódio com ele construído é considerado por muitos estudiosos, como Voltaire, em seu “Essai sur la Poésie Épique” (que até era tão inexacto e incompreensivo sobre Camões), como das mais grandiosas e perfeitas da literatura épica de todos os tempos. E até como afirma o Dr. Fidelino de Figueiredo: “O intuito épico do engrandecimento da gente portuguesa em nenhuma outra parte dos “Lusíadas” se cumpriu, com tão supremo génio, como nesta criação do Adamastor.

Vasco da Gama vs. Adamastor